Tudo está bem

“A Rich Man inside an refrigerated Tesla” (Thiago × DALL·E)

A água estava devidamente aquecida, nem fria, nem quente. Muito menos morna. Água morna é pior que água fria e só perde para a água gelada, essa sim, campeã de desconforto. Mas aquela água não. Aquela estava na temperatura quente que não queimava e que era aquecida o suficiente para fazer vapor na janela e no espelho. A intensidade da água também era perfeita. Não era fraca para doer como gota solitária, nem intensa demais para se espalhar por toda parte, entrando por nariz, boca e irritando os olhos com o cloro do tratamento da Sabesp.

O lençol era 400 fios, tão confortável como um lençol de hospital, mas com custo altíssimo e matérias primas de extrema qualidade. Usá-lo, no entanto, trazia um prazer menos tátil do que psicológico. O travesseiro apoiava sua cabeça em um ângulo anatômico, com firmeza suficiente para trazer sustentação da parte mais pesada de seu corpo e maciez suficiente para abrigar a orelha deitada de lado naquela trouxinha tão cara aos bolsos quanto ao sono bem qualificado.

A pele bem hidratada pelo meticuloso consumo de três litros de água, complementados por cosmético de boa qualidade com cheiro suave, trazia um atrito confortante do corpo com o lençol de realeza, como se fosse uma outra pele ainda mais necessária ao civilizado homo sapiens. A temperatura era regulada por um ar-condicionado programado entre os ideais 18 e 28 graus Celsius. Problemas com a conta de energia não passava pela sua cabeça, pois já se prevenira antes, única forma de se precaver mesmo em qualquer linha do tempo, instalando um kit de captação de energia solar que permitia o uso da refrigeração sem a menor brisa de culpa.

O veículo que se dirigia ao trabalho era dotado das últimas atualizações do mercado. Movido a eletricidade, alimentada pelos painéis solares, o automóvel emitia quase nenhum barulho. Refrigerava-se automaticamente em horários programados, permitindo ao condutor simbólico, uma vez que tinha programação self drive, entrar no veículo já regulado entre os perfeitos 18 e 23 graus Celsius.

Tudo estava perfeitamente bem, até que por um segundo de distração apertou o botão one touch de baixar as janelas do carro. O calor tropical de janeiro apoderou-se rapidamente do nariz, o vapor do Rio poluído se apossou daquele pequeno espaço refrigerado, as buzinas de motoboys entregadores roubaram aquela redoma silenciosa em decibéis ensurdecedores. Crianças ofereciam bala ali naquele trânsito, outras buscavam oportunidades de furtarem celulares de motoristas menos preocupados. Buzinas de outros motoristas invadiam os ouvidos.

Baixou a janela rapidamente e novamente estava em paz.

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