A narrativa dessa viagem é esburacada por brasas de maconha, distúrbios do sono, isolamento geográfico, privações econômicas enormes, desapego, zero sinal de internet e muitos jovens místicos.
A ideia dessa narrativa não é expor nenhuma figura específica, por isso omito ao máximo localizações, datas e nomes reais. Este não é um texto bolsonarista, não é um texto hater, não é uma crítica aos credos de ninguém. Até porque um texto bolsonarista poderia muito bem ser um texto pró-astrologia, já que um dos maiores conselheiros do atual governo é um astrólogo, bem pago e, como os personagens dessa narração, famoso filósofo. Ainda na defesa do viés bem intencionado desse texto, é preciso dizer que, como levantamento muito bem feito da página acabajovemmístico no Instagram, apesar de aparentarem aura de paz e harmonia perene que nem mesmo o Rivotril é capaz de proporcionar, parte desse coletivo que se divulga como especiais seres iluminados são na verdade facilmente irritadiços e vingativos e, por falta de termo mais antigo e mais preciso, canceladores e haters. Alguns oferecem constelação familiar em seus consultórios às 15 horas e à noite tomam suas doses de colorquina+ivermectina+crystal (água mineral) capaz de afastar mal olhado, olho gordo, energias negativas do Atila Iamarino e, principalmente, o Corona Vírus. Claro que não são todos, nem a maioria, nem o caso desses dessa história que são mais próximos de Ciro Gomes no espectro ideológico.
Essa semana eu escutei um podcast do Globoplay com o Chico Felitti chamado Isso Está Acontecendo, mais especificamente o episódio 3, A Era do Oráculo. O jornalista investigou o crescimento do mercado místico no Brasil (segmento que já é bilionário nos Estados Unidos). Dentre os entrevistados estava a famosa digital influencer e taróloga Papisa que conta sua trajetória do catolicismo ao esoterismo. Ele também mencionou o movimento de negação ao misticismo que se volta para a ciência em linguagem provocativa e humorística com uma pitadinha de hate, como no perfil acabajovemmistico no Instagram.
Embora o fenômeno do misticismo no Brasil esteja a todo vapor, ele não é novo e, como explorado pelo próprio podcast, funciona como um pêndulo da cultura que intercala seus temas entre idas e vindas, década a década, em movimentos como a moda, a música e outros produtos culturais. Na música, por exemplo, é evidente a emergência da soul music, ou neo soul para alguns, cujos maiores expoentes de 2021 são Bruno Mars e Anderson .Paak com o hit Leave The Door Open, junto com a popularidade da música zen dos engajados no home office, mindfulness e coaching. No caso da moda, a Gucci, por exemplo, explora as imagens do esoterismo popular como o zodíaco. A Dolce & Gabbana se volta às imagens da arte sacra em suas coleções. Uma coexistindo em contraponto e concorrência à outra.
A propósito, a soul music é um movimento musical dos anos 1950 e início dos anos 1960 que emergiu das comunidades afro-americanas, inspirados na gospel music, no R&B, e no jazz. Na saturação desse movimento musical que sacudiu, literalmente, os Estados Unidos, nas décadas seguintes, de 1970 e 1980, emerge a New Age, não a tendência musical, mas o movimento místico esotérico que inspirou comunidades hippies, festivais de música e uma nova religiosidade aberta e bem próxima da discursividade que observamos nos novos jovens místicos do Instagram.
A influência da New Age – mesmo não sendo um movimento homogêneo e rastreável facilmente, gerando enormes querelas acadêmicas nos antropólogos da religião – pegou todo mundo. Vez ou outra eu e você “pensamos positivo”, fugimos de uma “vibe pesada” ou vamos para a praia descarregar as “energias ruins”. Todo esse léxico é a versão aportuguesada da New Age (Nova Era) que é um movimento estadunidense de questionamento e desconstrução das religiões monoteístas tradicionais, como o catolicismo, o judaísmo e o islamismo.
O motivo de eu estar dando essa introdução é para contar a história de como eu fui parar em uma Volkswagen Kombi de idade desconhecida em direção à Belo Horizonte com um crew de jovens místicos. Como eu não quero expor nenhum daqueles amigos com quem eu viajei, a quem credito enorme enorme gratidão (palavra obrigatória na galera new age), eu vou criar nomes fictícios das pessoas e dos lugares. Meus companheiros de viagem eram Carla, João e Cândido.
Carla era um garota de classe média, negra, cabelos lisos e traços nativos dos povos originais do Brasil. O pai era cantor de uma famosa banda da cidade dela. Carlinha tinha um sorriso cativante, beleza padrão bem acima da média e um humor mais bicha-má parecido com o meu. Era a pessoa com quem eu mais me identificava e me sentia próximo, por achar que, tanto ela como eu, estávamos no mesmo barco sem entender nada daquela viagem e com um arrependimento de não ter pegado um ônibus da São Geraldo em direção à Minas Gerais. Na sua bagagem trazia quilos de maconha – muito da boa, inclusive – e o manual do jovem místico iniciante, Osho. A viagem demorou mais de um mês e o livro não saia de suas mãos, como se não terminasse nunca, mesmo sendo um volume pequeno, cuja leitura poderia ser feita em poucas horas.
Carla lia e fumava, fumava e lia, simultaneamente e também respectivamente. Vez ou outra parava a leitura com algum insight que era compartilhado a todos que, ou concordavam de forma apressada, emendando experiências pessoais que comprovavam os ensinamentos da bíblia dos Rajneeshees, ou se entreolhavam com sentimento de que, telepaticamente, haviam compreendido toda a linha de raciocínio. Apesar de iniciante nas práticas místicas, estando na fase do beabá com seu manual do Bhagwan Shree Rajneesh, a minha amiga já ostentava toda indumentária de uma mística experimentada: vestidos longos de tecidos coloridos, leves e esvoaçantes, belas pulseiras nos dois braços e um piercing que não sei se remetia à sua pouca idade, ou ao ornamento distintivo de uma mística em processo de formação.
Em algum momento, não sei se após o término do livro ou do estoque de erva que foi compartilhado por todos sem nenhuma compensação financeira, Carla mostrou-se extremamente irritada. A viagem nunca chegava ao seu destino final, o dinheiro já era escasso e a companhia das mesmas pessoas cotidianamente já começava a azedar a relação. Abandonou então o seu gosto pela leitura e passou a se dedicar ao crochê de forma quase compulsiva, como se estivesse a enforcar em cada nó os seus companheiros de Kombi. O novo ofício, do qual pretendia tirar seu sustento caso não fosse exitosa sua aventura na Hogwarts brasileira do Paraná, foi herança de outro importante membro da minha aventura nômade: João.
João era um rapaz jovem, provavelmente da mesma idade que eu, muito bonito e de uma simpatia afetuosa, terna, quase ingênua. A beleza do garoto saltava aos olhos de todos: braços fortes, uma intrepidez de Hércules, um sorriso tímido, simpático e uma voz tão doce e suave a qual não se podia negar nada. Era o tipo de pessoa que, por ser tão boa, não era alvo de nenhuma piada pelas costas, o que lhe tornava um assunto quase ausente das minhas conversas com Carla. João era um rapaz de origem humilde e sua casa não lhe deixaria esconder suas condições financeiras. O que lhe faltava em posses, lhe sobrava em simpatia e em talento acima do normal para artes das mais diversas linguagens: pintura, costura, escultura e ofícios não menos complicados como a marcenaria.
Inclusive foi com seus conhecimentos em marcenaria que, em questão de horas, João transformou a calejada Kombi em uma espécie de motorhome que, ao longo da estrada, se autodestruiu, demandando reparos constantes que, em certa altura da interminável jornada, foram abandonados. Para dizer que não ajudei em nada, eu passei uma tinta impermeabilizante nas placas de madeira da casa móvel, com olhares de reprovação de quem me ensinava como e em que sentido eu deveria usar o rolinho de pintura. Durante a viagem, João era uma espécie de co-piloto que, assim como eu, temia pela integridade física dos passageiros, preocupação que não era compartilhada com os demais ocupantes do veículo. Em algum momento até eu mesmo abandonei o autocuidado e torcia apenas para, em caso de morte, que fosse no meus breves momentos de sono.
João e eu éramos os gays da viagem. E, como todo gay, competíamos em nossos conhecimentos de culinária e, desde as primeiras empreitadas alimentícias, estabeleceu-se uma guerra fria entre as técnicas de um lado do nordeste e outro. Aquele foi um teste empírico para derrubar de vez o mito de uma suposta identidade nordestina: onde tem um pernambucano não tem paz e eu sou o filho de uma, criado à beira do fogão de lenha apreendendo técnica por técnica. Apesar de não ter mais contato com essa gay, minha estima e admiração por ela continuam intactas.
O derradeiro personagem dessa empreitada era Cândido. Cândido era um homem de meia idade que morava com a mãe, já próximo dos 40 anos de idade. Era o mais velho dos nômades espirituais. O guru de nossa viagem trazia consigo todos os adereços típicos de um homem que, por um motivo ou outro, decidiu dedicar-se plenamente aos nobres ofícios da arte mística. Isso não o impedia de, numa fluidez geral de caráter, de partir um outro coração de uma jovem moça apaixonada aqui e acolá.
Convivi com o exemplar de oráculo por cerca de dois meses e, nesse curto período, conheci duas garotas que tinham sido levadas por sua aura sensual e boa praça. O exímio galanteador ornamentava-se com todo o kit esquerdomacho: pele morena, bronzeada do sol da linha do equador, corpo quase parrudo (as gays entenderão exatamente de qual tipo estou falando), com sorriso sem vergonha, violão debaixo do braço, casa com chão de madeira no centro da cidade, cuecas em estado precário e um papo que, de algum modo, era hipnótico. Era, certamente, o jovem místico mais experimentado do bando. A maior lembrança que tenho dele foi de quando ele quebrou minha rede e eu passei o resto da viagem dormindo no chão sem a menor empatia ou reembolso pelo prejuízo.
Com muita preguiça, corpo mole e má vontade eu dividia o volante da surrada Volkswagen com ele. Ele me orientava em cada gesto, movimento, como se fosse o meu tardio instrutor do Centro de Formação de Condutores. Me sentia em uma aula daqueles cursos Dirigindo Bem. Cândido era talvez o mais endinheirado da viagem. Não por ser um grande herdeiro ou detentor de abastada riqueza material. O fato é que pra essa viagem ele tinha conseguido o fomento de uma fundação pública de seu estado.
Eu até tento com esforços cansativos nutrir algum tipo de justiça com os bons momentos que tivemos juntos, mas na verdade as imagens de um grande folgadão são as que minha mente resolveu reter. Me lembra até um pouco aquela personalidade dissimulada do Osho que a gente vê em Wild Wild Country na Netflix. Apesar de ter condições de financiar o rolê, Cândido nos fazia drenar os recursos que já não tínhamos, devido ao alto consumo de gasolina típico de uma perua. Diga-se de passagem, meu financiamento dessa viagem tinha sido feito generosamente pelos meus pais e pelos meus amigos que depositaram pequenos valores que solicitei um a um via Messenger no Facebook.
À uma certa altura, eu e Carla tivemos que vender salgados para financiar uma viagem que já nem estava acontecendo. Enfim, deixe-me voltar ao meu tom humorístico porque estou deixando a vibe hater tomar conta desse relato. Cândido era o meu alfabetizador na arte do misticismo. Minha sorte é que eu, à época, era um leitor ferrenho da gay chatérrima Michel Focault, o que, de alguma forma, me fazia todo tempo observar sua narrativa com ouvidos de um acadêmico deslumbrado e detido em análises super meticulosas de cada letra ou palavra.
No início, ou melhor, boa parte do tempo eu embarquei naquela discursividade que Cândido me transmitia em um currículo invisível com empolgação de adolescente. Eu estava carente, então me perdoo por isso. Mas, em algum momento, a ficha caiu e eu saquei (gíria indispensável ao jovem místico) que estava em um looping de frases repetidas em formato idêntico por mais de um mês: era o conjunto léxico mistiquês que de alguma forma eu estava começando a abraçar e, involuntariamente, divulgar.
Cândido era professor também, assim como eu, formado em alguma das ciências biológicas. Mas por rejeitar o título dado pelos insignificantes cânones feitos por humanos comuns ele preferia se autointitular de alquimista. O alquimista se gabava de suas habilidades de separar óleos em processos de filtração, destilação, prensa e outros métodos mais ou menos elaborados. Mas certamente, a maior habilidade, que com maestria executava, era a de extrair moeda de seus companheiros de viagem. Talvez esteja aí, enfim, a descoberta de como se pode gerar ouro a partir da alquimia: with a little help from my friends.
Mas a maior habilidade deste alquimista era a da palavra. Era leitor, com certeza, e já tinha lido títulos importantes da psicologia, como Carl Gustav Jung. Mas como para um místico de carteirinha a ciência aberta, transparente, que se publica sem segredo em plataformas como o Scielo, não tem grande prestígio ele misturava seus conhecimentos em psicologia, com alquimia, tarô e alguma cosmovisão do grande currículo aberto das religiões esotéricas. Em seu modo de falar, Cândido era meticuloso. Não queria contrariar seu aprendiz, nem lhe parecer violento, muito menos soar de modo formal. Reflexões eram totalmente vetadas: qualquer exposição de um estado de humor, de descontentamento, tristeza ou oposição eram imediatamente interrompidos pelo comando; sai dessa brisa, irmão; não se rouba nessa brisa. Inicialmente o comando não fazia sentido, mas ao poucos, pela repetição e pelo suporte dos outros místicos ao meu redor, eu comecei a entender que só cabia a experiência eufórica, pacífica, domesticada e, de preferência, sempre feliz e “de boas”.
Apesar de não ser um método aparentemente violento de educação, ele era coercitivo e muito bem sucedido. Era como se eu, pelo isolamento da viagem, do sinal de celular, só tivesse acesso a um determinado tipo de linguagem da qual eu só tinha a opção de me adaptar. Como se eu chegasse a um determinado país e, repentinamente, tivesse de esquecer minha língua materna para conseguir me virar naquele novo país. Deu muito certo. Em poucos dias eu poderia ser facilmente confundido com um jovem místico. Minhas roupas mudaram, meu modo de falar adquiriu uma entonação e ritmo completamente novo, que não era de recorte geográfico ou histórico. Não se falava aquela língua a não ser entre jovens místicos. Eu, por algum momento, abdicava de minha identidade na busca por aprovação daquele pequeno grupo.
Meu intensivão de jovem místico em construção começou ainda na cidade natal de Cândido. Em uma das primeiras palestrinhas, nos aposentos do Osho brasileiro, eu fui abordado por uma bela moça recém graduada em Física que veio me contar sobre os milagres da “física quântica”. A dica era: se eu quisesse alguma coisa, bastava eu pensar no objeto desejado que a física quântica se encarregaria do restante. Até que eu tentei, viu… Não custava nada, né? Mas não consegui atrair nada além de frustração pela minha baixa capacidade energética. A segunda aula foi assistir a trilogia Matrix que, para o jovem místico, é a explicação de todo o universo em que vivemos, suas relações, instituições, conspirações e respostas de vida. Não fui um bom aluno e dormi nos dez primeiros minutos de filme, pois eu tenho muita dificuldade mesmo de ficar acordado em frente à uma tela de TV, principalmente vendo conteúdo que eu já vi. Sem contar que eu vivia com sono de erva.
Dias depois da sessão educativa de cinema, partíamos para a viagem: paramentados, protegidos com todos os patuás catalogados ou não, bolsos servidos modestamente de dinheiro e uma empolgação de criança que não conseguia nem dormir antes de uma viagem. Como se fosse um sinal do mau agouro do que nos aguardava, a Kombi quebrou em menos de quinze minutos de viagem, antes mesmo da primeira das dezenas de abastecimentos de gasolina com preço típico dos locais mais remotos do país.
Inicialmente a experiência foi um barato. Mas ela começou a se tornar um verdadeiro inferno conforme o dinheiro acabava e no momento em que eu sentia enorme vontade de falar com pessoas que estivessem vivendo problemas, depressões, angústias, tristezas, alegrias, altos e baixos. Pessoas que não permanecessem num estado letárgico de alegria desmotivada, ignorando todas as privações de conforto, alimentação, finanças a que estávamos submetidos como se fossem a melhor coisa do mundo. Um dos episódios onde eu comecei a perceber que eu estava andando com pessoas pra lá de estranhas foi quando em Brasília, um dos pontos de parada de nossa viagem, um senhor de uma casa onde estávamos hospedados soltou vários comentários racistas, homofóbicos e, pasmem, nazistas. Eu, com medo de ir para o olho da rua e dormir ao relento, vergonhosamente me calei. Mas, em situação mais privada, comentei aos meus amigos esotéricos o absurdo daquelas falas. Parecia que eu tinha matado alguém por ter me referido ao preconceito de nosso anfitrião. Cândido apenas orientou para que eu ignorasse e emanasse amor ao simpatizante nazista, algo que eu bem que tentei fazer, com resultados nulos, se não, negativos.
Depois de emanar minha energia negativa em combate a um provável simpatizante do nazismo, soube, de última hora e sem qualquer consulta, que estávamos a caminho de um sítio. O sítio ficava em uma localização bem remota de Goiás que é o paraíso brasileiro de todo rolezero místico bolsonarista ou isentão (não se fala de política entre jovens mísiticos). Estava sem conexão de celular, sem possibilidade de sair do local e com a Kombi que, por vários quilômetros já andava sem freio, parada, presa ali naquela zona rural como se lá fosse o seu e meu destino final para o resto de sua vida de motorhome aposentado e místico mal sucedido.
Nesse sítio foi que as coisas começaram a ficar estranhas. De um momento para outro estávamos lá, dormindo há dias, sem perspectiva de continuidade da viagem. A parte boa foi que eu andei a cavalo, coisa que eu gosto bastante de fazer. Por outro lado, a linguagem instrutiva se tornava cada vez mais infantilizada e por pouco não recebi estrelinhas na testa belo meu mediano desempenho como jovem místico entusiasta. Certa noite minha amiga Carla me acordou se queixando de que tinha sido tocada por alguém durante a noite, de que estava com medo de ficar ali naquele sítio. Eu, já tomado pelo linguajar transcendental desmobilizante, orientei que ela saísse daquela bad vibe, que ficasse de boa e que, provavelmente, aquilo era coisa de sua cabeça. Este é o momento do qual eu mais me arrependo: Carla era a única mulher daquele passeio maldito e eu era o seu maior confidente nessa trajetória. Falhei como amigo, militante e como pessoa. Se ela estiver lendo isso eu deixo meus pedidos de desculpas aqui.
Depois de alguns dias de sítio e do episódio de provável abuso da minha amiga Carla eu fiquei de saco cheio e comecei a insistir que deveríamos ir embora pois eu tinha uma data para estar em São Paulo pra defesa de um mestrado, tarefa acadêmica nunca concluída pela letargia enorme que aquela viagem me deixaria como herança. Com muita má vontade deram um jeito de arrumar o freio da Kombi, reparo que não levou muito além de 30 minutos. E partimos em direção a Belo Horizonte, destino final (pelo menos pra mim) daquela viagem.
Vou omitir vários detalhes de tudo que aconteceu em BH, porque o texto já se alonga em nível cansativo de leitura e também de escrita. Na capital mineira fomos para a casa de alguns amigos do Cândido, amigos que tinham sido encontrados em festivais de jovens esotéricos em alguma cidade de Goiás. Espécie de evento naipe Mindsomar in Brazil, ou João de Deus for young adults, mas com baixa ou nula taxa de mortalidade. No QG belo-horizontino dos alquimistas PHD eu fui submetido a várias palestrinhas disfarçadas de conversa, onde eu não podia fazer nada, a não ser ouvir. A qualquer intromissão da minha pessoa eu era sutilmente repreendido com indiretas que menosprezavam análise de discurso, filosofia, método científico ou afins. Frases do tipo “as pessoas estão perdidas nesse conhecimento superficial da vidinha acadêmica”; ou “tem coisa que a gente só alcança com a mente aberta para a emanação, longe de academicismo”, dentre outros malabarismos conceituais e desdém. Basicamente, podemos definir o jovem místico como um negacionista mais bem preparado por décadas de desenvolvimento de uma lógica anti-científica que se vale da ciência apenas como uma parte da grande cosmologia esotérica.
Em Belo Horizonte, primeiro lugar onde eu consegui a energia que eu precisava há dias, que era a de uma piroca dentro de mim, eu saí e extravasei tudo em vários machos de tamanhos e credos diferentes. Era como se eu voltasse à vida: saísse de uma bolha ascética para encontrar homens que viviam vidas normais, que tinham seus empregos, desempregos, divas do pop e perfil no Grindr. Fui muito julgado pelos jovens místicos por me deixar levar por sentimentos tão mesquinhos como o tesão. E eu pisei na jaca mesmo, tanto que fui atrás de profilaxia pós exposição – VIVA O SUS. O olhar de reprovação foi uma espécie de gota d’água pra mim. Depois de mais de um mês sem sexo, eu simplesmente virei uma putinha fútil ao olhar daquelas mentes superiores e iluminadas.
Numa noite me chamaram pra um show. Insistiram pra que eu fosse, eu recusei e dormi na Kombi. Precisava de um momento comigo, pra me reencontrar com a minha identidade perdida, para me reapropriar daquilo que eu sou com todas as rasuras e inconsistências felizes que faziam de mim essa bela bagunça de sujeito. Eu não podia me expressar com humor ácido, não podia transar, não podia ficar triste ou deprimido, não podia crer na realidade que fosse palpável e toda minha vida acadêmica era uma grande tolice aos olhos dos sábios espiritualizados. Me senti deprimido, triste, perdido e muito solitário no meio daquele círculo de pessoas desconectadas da vivência simples, comum e confortavelmente medíocre. Nessa mesma noite eles comporam uma música, na qual pediam minhas sugestões de versos, todos ignorados, apesar de me considerarem como compositor da música na qual não tenho nenhuma letra. A música basicamente dizia que eu tinha algo vivo dentro de mim a ser despertado. E sim, havia, e era a raiva de ter sido feito de besta por mais de um mês.
No outro dia fui à rodoviária, comprei minha passagem de volta pra casa, em ônibus rodoviário regulamentado pela ANTT, para a mesma data sem avisar ninguém. Me despedi de todos com um enorme e sonoro “gratidão”.
P.S.: Aparentemente a escritora Márcia Denser passou por uma experiência “romântica” com um jovem místico ainda nos anos de 1980 e ela relata a experiência no conto O vampiro da Alameda Casabranca.
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